Dia Do Aviador

30/10/2005

 

 

No último dia 23, domingo passado, apoiado por algumas cervejas amigas, comemorei, ou “bebemorei” como queiram, o aniversário do primeiro vôo de um aparelho mais pesado que o ar, perpetuado por Santos Dumont,  meu 34º dia do Aviador, de forma particular e privada. Há exatos 34 anos e algumas cervejas depois, meu espírito se desprende e livre, tal qual um “lindo passarinho azul”, reporta-se às exatas 04:15 hs local, Natal-RN, do dia de meu primeiro vôo solo.

 

As imagens me vêem claras, com meu “discreto” macacão de vôo laranja, tento inicialmente sair incólume do alojamento desviando das miríades de morcegos, que já afetados pela límpida claridade que se avizinhava, perdem suas melhores manobras em nossos cabelos ou corpos, fazendo do ato de se dirigir ao rancho uma epopéia digna do drama que a partir dali se desencadeará.

 

O rancho passa rápido, até porque, além do café bem fraco, pouco mais vale a pena enfrentar para encarar aquela secura crônica na boca. Secura decorrente provavelmente, racionalizamos, dos ventos secos que sopram desde a caatinga ali ao lado. Ou seria a secura decorrente da consciência, ainda que inconsciente, de que o avião estava muito mais bem preparado para o embate que se avizinhava?

 

Tomamos o velho ônibus Mercedes azul (o camelo), rapidamente o Flechinha inicia uma cantoria improvisada envolvendo "Hits" de então, BR3 entre outros, todas ressaltando nossa total e absoluta incapacidade de domar o mais pesado que o ar.

 

Chegamos finalmente ao Esquadrão de Vôo, já pregadas ao quadro de aviso estão as plaquetas daqueles incautos aeronautas que irão, solo, cumprir o tempo da Super Madruga, com decolagem prevista para as 04:45 hs local.

 

Ali, de frente para aquele quadro enorme, fito pela primeira vez a identificação daquele que seria meu algoz, era o velho 0957, Zarapa de responsa, bicho danado que não dava a mínima chance a calouros que com ele tivessem o desprazer de desfilar sua ignorância aeronáutica.

 

Mal tomamos esse conhecimento, partimos para a linha de vôo onde aquele número iria se materializar em um enorme, na minha visão de então, avião de treinamento primário, o famigerado Uirapuru T-23 (née Zarapa). Parei em frente ao 0957 e encarei-o bem nos faróis e como ele não desviava os olhos, desviei os meus, preocupado em como levar aquele desatino avante.

 

Inicio a inspeção externa, dreno-lhe muito mais combustível que em outras vezes, mas sempre me dava a impressão de que muito mais bolhas d'água caiam do tanque do que seria sensato supor, mas como preocupação e água benta nunca fizeram mal a ninguém, dispensei ali alguns litros daquele caro combustível, só para precaver-me contra o excesso de água de que o nordeste tanto necessitava. Chequei o óleo do ultraconfiável motor Licomming, avaliei o nível do fluído hidráulico, tão apreciado pelas garotas locais, pois que, além de suas propriedades bronzeadoras, ainda era “cheirosinho”, ou “chéérosinhu”, se preferirem.

 

Já terminando a inspeção, fui lembrado pelo Rego da protocolar “mijadinha” na cauda do bruto. Cacete, por que é que eu havia ido ao banheiro antes de sair do alojamento? Agora, o desperdício uréico, somado ao “temor” do pré-vôo, não me permitiam a mínima gotinha salvadora. Início um processo de sudorese, claro que irei morrer se não der uma “mijadinha” na cauda. Dirijo-me à birosca dos alunos e ali derrubo dois enormes copos com água, mesmo sabendo que, ao assim agir, estaria ferindo toda a minha filosofia acerca malefícios oxidantes da água para o corpo humano, mas convenhamos, minha vida estava em jogo ali. Não dar uma “mijadinha” na cauda do avião antes do vôo solo é o mesmo que decretar a própria sentença de morte, quase pior do que tirar fotografia segurando a hélice.

 

Devidamente mijada a cauda, preparo-me para adentrar à “garça”. Pareceu-me enorme com aquele lugar ao lado, normalmente ocupado pelo meu instrutor, agora vazio com seus cintos e suspensórios firmemente presos contra o banco. É eu estava absolutamente e irremediavelmente só.

 

Cheque interno, mistura rica, troco o tanque e dou bombada, os dois dedos, indicador e médio da mão direita, nos magnetos e o polegar da mão esquerda no botão de partida: - “Livre”, grito e inicio o procedimento mágico de dar vida àquela máquina mais que perfeita. Depois de uma leve tossida, o motor ronca sereno e forte, como deveria ser. O som poderoso de seu funcionar me transmuta em outra pessoa, ou melhor, trás a mim mesmo de volta. Aquele ronronar gracioso e potente liberta-me de todos os medos, o 0857 me acolhia em seu seio como parte dele mesmo.

 

Taxiamos e entramos na velha pista 16 E para a decolagem. Naquele momento, enquanto eu acionava a manete do motor, ele assumia comigo um compromisso, de levar-me, mostrar-me e fazer-me sentir coisas que eu jamais pudera imaginar.

 

De pronto partimos para uma hora e meia de vôo ao sul de Natal, na área de Tangará, seguindo em direção a João Pessoa pelo litoral. Então ele mais do que cumpriu sua promessa, mostrou-me os mais variados tons do mar do nordeste ao amanhecer, desde o sério azul marinho, passando por todos os tons de azuis e verdes, até o mais forte e profundo verde esmeralda.

 

Embriagado ainda com tão diversos e encantadores matizes, permitiu-me comandá-lo como até então eu não havia sequer sonhado conseguir, docilmente obedeceu a todos os meus comandos, permitidos a maioria, proibidos alguns, porém com sua maturidade, soube compreender os imprudentes arroubos de minha juventude, sem mandar-me uma conta que, sem dúvidas, eu não saberia como pagar.

 

Esquecemo-nos do tempo, perdemo-nos em belezas, encontramo-nos em nosso conhecimento e dessa maneira sub-reptícia levou-me a tocar a face de Deus. Aí ví-me totalmente perdido, absolutamente apaixonado por meu amigo e cúmplice 0957.

 

Retornei à base já com 15 minutos de atraso, tão enlevado me encontrava e para meu azar o aluno Ito havia ultrapassado, com seu Zarapa, a cabeceira oposta da 16 E, fazendo com que a placa do coordenador de pista ficasse fixamente vermelha, interditando-a. Três ou quatro arremetidas depois, já com quase duas horas de vôo e preocupadíssimo com o nível de combustível, simplesmente ignorei a placa e fiz um pouso “mantegasso”, que quase me levou ao êxtase.

 

Ainda absolutamente convencido ser a própria reencarnação do Barão Vermelho, fui abordado pelo comandante do esquadrão, que presenteou-me com “trocentas estrelas” (multa) por haver retornado com um atraso de quase uma hora. Meu instrutor, outras tantas por haver-lhe praticamente convencido de que eu havia morrido e, o que é pior, destruído o avião. Finalmente do tenente controlador da placa, um outro montão, por não haver respeitado a sinalização de pista.

 

Como podem ver amigos, meu processo de endividamento pessoal começou exatamente ali, mas independente disso eu jamais poderei esquecer meu primeiro vôo solo, quando meu amigo, meu irmão, o avião, mostrou-me como Deus está próximo.

 

 

 

Abel Brasil Pedro 68-114

                                                                                                   Asp. Of. Av. R2