Moralização

19/03/2011

 

No Brasil muito se discute política, mas de modo geral esta discussão é centrada, ou no Executivo, ou na pessoa que ocupa, ou quer ocupar esse cargo. Raramente vemos uma análise mais profunda e reflexiva acerca do Poder Legislativo, sua composição, suas atribuições, bem como o acompanhamento da execução dos objetivos de seus componentes, tanto em termos individuais, quanto no que toca aos partidos que representam, seus programas e propostas.

 

É natural que em um regime presidencialista como o brasileiro, a figura do primeiro mandatário se destaque. Sua eleição, por ser majoritária e individual, propicia muito mais discussões, arrebata muitas paixões, que como tais pouco ou nada têm de racionais. Dá-se muito mais ênfase à figura do candidato do que às suas propostas, ou se são elas coerentes com o partido que diz representar. Aliás, com raras exceções, poucos são os partidos que têm claramente explicitados seus programas e objetivos, que sejam outros que não o poder pura e simplesmente.

 

Creio que para iniciarmos uma análise mais abrangente do ambiente político brasileiro, deveríamos fazê-lo iniciando pelos partidos políticos. A Constituição Federal em seu Capítulo V, artigo 17, diz dos direitos de criação, estruturação, organização e funcionamento; da aquisição de recursos do fundo partidário e do acesso gratuito ao rádio e à televisão; restringe a captação de meios pecuniários à entidades nacionais; obriga que prestem contas à Justiça Eleitoral e os impede da utilização de organizações para-militares. Em nenhum momento porém determina a obrigatoriedade do estabelecimento de um programa partidário, nem de se conduzirem de acordo com ele.

 

Em conseqüência desse silêncio legal, a profusão de legendas na composição do Congresso Nacional, faz com que esse se pareça mais com uma “sopa de letrinhas” do que com a casa que deveria representar o povo em seus objetivos, valores e aspirações. Qualquer aventureiro mal intencionado tem o direito constitucional de criar uma sigla partidária para locupletar-se das benesses advindas da enorme possibilidade de conchavos e sinecuras.

 

As regras para a formação de um partido político deveriam ser mais claras e rígidas, bem como a exigência da coerência em sua conduta, seja coletivamente enquanto agremiação política, seja pelo comportamento individual de seus afiliados no exercício de cargos eletivos. Com o estabelecimento dessas normas não haveria espaço nem necessidade para a discussão estéril se a vaga no legislativo pertence ao partido ou ao candidato eleito.

 

Os recursos financeiros de cada partido deveriam ter suas fontes claramente estabelecidas e sua contabilidade semestralmente auditada pelos Tribunais de Contas à luz da prática contábil legalmente aceita. Quaisquer desvios seriam punidos com rigor, seja de caráter pecuniário (multas), de cunho eleitoral (elegibilidade), ou mesmo penal.

 

As receitas e despesas de campanha seriam dos partidos, que por elas seriam responsabilizados, e suas possíveis fontes claramente estabelecidas e de divulgação pública obrigatória. Saldos de campanha pertenceriam aos partidos e não aos candidatos, que não teriam sequer acesso a eles.

 

Através de partidos com programas claros e de cumprimento obrigatório, sob pena de perda do mandato, muitas alianças espúrias claramente fisiológicas seriam impedidas. A sobrevivência de legendas que, como hoje se perpetuam no poder, cedendo seu apoio em troca de cargos e favores, não mais seria possível.

 

Uma vez definidas as regras para a composição e conduta partidárias, seria necessário o estabelecimento também de um código de ética parlamentar, realmente “ético”, onde não houvesse espaço para posturas “imorais, mas não ilegais”.

 

O comportamento ético do parlamentar deveria ser mandatório e seus desvios julgados pelos Tribunais Superiores, independente de licença de órgão legislativo. O parlamentar teria imunidade apenas por suas idéias e condutas inerentes à função, fora disso seria tratado até com mais rigor do que o cidadão comum, em virtude da obrigatoriedade do exemplo, algo que é legítimo esperar daqueles que se arvoram representar o povo.

 

Cada cargo eletivo teria sua descrição de direitos, deveres e requisitos claramente estabelecidos. Afinal não faz sentido que para funções de carreiras, tanto na administração pública, quanto no mercado privado, parâmetros sejam determinados e para ocupar a importante função de legislar e de fiscalizar o Executivo não existam.

 

O número de parlamentares deveria ser reduzido e o custo total do Poder Legislativo seria um percentual do Produto Interno Bruto, tendo por base os custos médios relativos das casas legislativas de países com economias similares à do Brasil.

 

Senadores, deputados e vereadores estariam absolutamente impedidos de legislar em causa própria. Nada de votarem à socapa benefícios e emolumentos, que apenas os beneficiem. Nenhum reajuste salarial poderia exceder àquele determinado para toda a coletividade, balizado para isso no reajuste do salário mínimo.

 

Os valores das contribuições previdenciárias e o prazo para aposentadoria seria contado da mesma maneira ao de todos os trabalhadores brasileiros, sem possibilidade de acumulação com outras pensões, ou benefícios.

 

Os proventos dos parlamentares deveriam ser bastante e suficiente para a sua manutenção condizente com a posição, sem luxo ou ostentação, balizados pela a média da remuneração de mercado em cargos de responsabilidade e exigência equivalentes. Não seriam oferecidos imóveis funcionais, ou auxílio residência, uma vez que seus salários, como o de qualquer trabalhador, devem arcar com esse ônus.

Os custos da representação política pessoal do parlamentar deveriam correr por sua conta e risco, ou subvencionada pelo partido, afinal essa atividade é inerente à função política, não sendo moralmente cabível que o dinheiro público arque com tal custo. Até por que, o montante de recursos pertencentes ao tesouro vem da totalidade da população e não de uma parcela ou facção, são incorporados ao patrimônio para custear as despesas e as necessidades de investimentos públicos. Pertence à comunidade para que o Estado cumpra suas atribuições. A atividade político-partidária com fins eleitorais deve ser custeada por quem tem interesse nela.

 

Toda a burocracia das Casas Legislativas seria realizada através de corpo profissional concursado para esse fim, seja no plenário, nos gabinetes individuais, ou na infra-estrutura administrativa. Qualquer assessor pessoal teria seus vencimentos atendidos por conta do parlamentar, ou do partido que representasse, sem que o erário público contribuísse para esse fim.

 

A eleição deveria ser feita através do voto distrital onde o país, o estado, ou o município seriam divididos em distritos eleitorais: regiões com aproximadamente a mesma população. Cada distrito elegeria um deputado e, assim, completar-se-iam as vagas no congresso, câmaras de deputados e nas assembléias legislativas.

 

O sistema distrital assegura maior identidade entre eleitores e eleitos, dando legitimidade indispensável ao representante. O parlamentar é diretamente fiscalizado pelos eleitores que moram no seu distrito. Ele poderá ter de concorrer a uma nova eleição sempre no mesmo distrito e, por isso, está sempre prestando contas de sua atuação.

 

Pode-se objetar que esse sistema é injusto, ou inaplicável ao modelo brasileiro, em virtude das grandes discrepâncias demográficas entre os diversos entes federativos. Aceitando-se esse argumento, poder-se-ia adotar o sistema de voto distrital misto. Neste sistema metade das vagas é distribuída pela regra proporcional e a outra metade, pelo sistema distrital. O eleitor tem dois votos para cada cargo: um para a lista proporcional, com lista fechada, e outro para a disputa em seu distrito, assim as diferenças populacionais seriam amenizadas.

 

Não sou ingênuo a ponto de acreditar que mudanças como essas solucionariam a canalhice endêmica que assola nossa política. Até porque países com muito mais tradição democrática e de nível cultural muito superior ao nosso, não ficam imunes ao vírus da corrupção e do descaminho político. O poder trás em si mesmo a tentação de locupletar-se, mas regras claras e rígidas tornam isso mais difícil, se por nada, pelo menos pelo receio da punição decorrente.

 

Não tenho o objetivo aqui de esgotar tão árido e controverso tema, mas acredito que, se perseguíssemos com denodo a moralização do Poder Legislativo e de seus componentes, o próprio tempo e a depuração política daí advinda, proporcionaria lideranças políticas e candidatos ao Executivo mais probos. Consequentemente tornaria as composições e alianças, hoje meramente fisiológicas e eleitoreiras, mais voltadas a programas de governo do que para a locupletação pessoal.