Causos de Aviação- O Potengi

29/08/2011

 

O ano de 1971 foi particularmente seco para o Rio Grande do Norte, durante os nove meses que durou o curso no CFPM o “Aviador” não presenciou mais do que dez dias com poucas e esparsas chuvas. O resultado dessa secura pode o “Aviador” testemunhar por ocasião das manobras efetuadas em Maxaranguape, localidade a poucos quilômetros de Natal, mas já na região do agreste, onde predominava a vegetação lenhosa e retorcida característica da caatinga, com seus troncos e galhos cobertos por uma casca cinza esbranquiçada, como se tivessem sido queimados.

 

O ar quente e parado sem sequer uma única brisa refrescante, um piado alegre de pássaro. A ausência de vida só não era total devido a enorme quantidade de escorpiões que se apresentavam sempre que a areia amarela, que compunha a totalidade daquele chão, era revolvida. O que permitia ao “Aviador” e seus companheiros, nos momentos de ociosidade, a oportunidade de confirmar a teoria da tendência suicida dos escorpiões quando em situação de perigo, sem escapatória. A mórbida brincadeira consistia de fazer-se um círculo no chão, em volta do escorpião, com a gasolina drenada do “Zarapa”, atear-lhe fogo e ver o pobre animal voltar o ferrão contra a própria cabeça quando se dava conta de que não tinha saída do círculo de fogo.

 

O ano de 71, auge da repressão às manifestações artísticas que não se pautassem pela cartilha dos sensores, surpreendeu diversos autores e cantores brasileiros exilados na Europa. Dentre eles o que mais deixou patente seu sofrer foi Caetano Veloso, cuja melancolia impressionou de tal forma a Roberto Carlos, quando o visitou no exílio, que fez com que nos presenteasse com a preciosidade que é a música “Debaixo dos Caracóis”, sucesso naquele ano, mas que só muito tempo depois se veio saber ter sido o sofrimento de Caetano a fonte de inspiração.

 

No auge dessa tristeza Caetano lançou seu terceiro álbum solo: “Caetano Veloso”, dando vazão a toda a sua mágua em faixas como London Lodon; A Litle More Blue; In the Hot Sun of a Christmas Day; Asa Branca... Essa última teve na gravação de Caetano sua mais correta interpretação do drama da seca no nordeste descrito por Luiz Gonzaga. Deixando fluir livremente a toda depressão que o assolava, Caetano deu tal dramaticidade à interpretação de Asa Branca que quase nos faz ver a desolação da estiagem nordestina.

 

No último trimestre de 71, no auge da seca, estava o “Aviador” se deliciando no treinamento do vôo a jato. Cabe aqui um parenteses para informar que a instrução no T-37 C era efetuada em quatro áreas de instrução, restritas ao vôo da aviação civil a fim de prevenir eventuais acidentes. Duas se localizavam ao norte de Natal: Ares e Touro e duas ao sul: Tangará, seguindo a linha do litoral em direção a João Pessoa e Mirim, a sudoeste de Natal, seguindo mais ou menos o curso do rio Potengi, em direção à sua nascente.

 

A cidade de Natal fica à margem da foz do rio Potengi, foz essa tão larga e profunda, que o próprio porto da cidade situa-se dentro dessa foz. O “Aviador” e seus companheiros estavam bastante famialiarizados com o cenário portentoso da foz do Potengi, cenário esse cúmplice de muitos momentos alegres ou de fossa, curtidos no antigo “pier” de hidroaviões, na época já transformado no restaurante Rampa, do clube dos oficiais da aeronáutica.

 

Naquela tarde fazia o “Aviador” um vôo de instrução na área Mirim, tão tranquila estava aquela missão que o “Aviador” e seu instrutor sintonizaram o rádio do VOR, na rádio Cabugi, a fim de se evitar o incômodo e monótono “tip, tip” do sinal morse da estação Natal, prática essa comum entre o pessoal a fim de alegrar um pouco o espírito durante a instrução  antes de retornar à base.

A rádio Cabugi estava divulgando o recente album de Caetano tocando Asa Branca. Embalado naquele langor criado pela insolação da tarde, aliado à trilha musical, buscava o “Aviador” localizar-se no terreno parco de acidentes naturais do interior sudoeste potiguar. Deveria, segundo seus cálculos estar sobrevoando o rio Potengi, entretanto não via sinal do grande rio.

 

Cabe aqui ressaltar da preocupação que nos assaltava sempre que voávamos pelo interior, pois, sem a linha da costa a servir-nos de referência e sobre o efeito dos ventos alísios soprando constantemente de leste ou sudeste, nos deslocando paralelamente desviando-nos da rota, sem que houvesse indicação na bússola magnética, ficando alguns alunos irremediavelmente perdidos, situação essa que sussitou algumas aventuras que contaremos oportunamente.

 

Discretamente, para não chamar a atenção do instrutor, o “Aviador” inclinava ora a asa direita, ora a esquerda, buscando divisar o rio de sua referência, sem lograr o seu intento. Inquieto com o passar do tempo e a perspectiva de ter de confessar sua desorientação, passou a inclinar o avião mais amiúde, lá pelas tantas e sempre carinhosamente, houve pelo interfone a melífua voz do instrutor: ¾”Tá perdido caga pau?”.

 

Tendo já sido flagrado, não teve alternativa outra a não ser confessar sua situação: ¾ “Tenente pelas minhas contas nós deveríamos estar sobre o rio Potengi, mas não consigo vê-lo.”

 

O instrutor toma os controles do avião e, com sua delicadeza habitual, coloca-o no dorso e diz: ¾ “Não tá vendo ele ali embaixo?”

 

Pendurado pelos suspensórios o “Aviador” olha para o chão e vê um largo estradão poeirento. Embalado pela melancolia de Asa Branca o “Aviador” testemunhou mais essa tragédia nordestina, apenas a poucos quilômetros de sua espetacular foz, o Potengi transforma-se em um rio “cortado” na expressão do sertanejo, ou seja, um rio seco, como seco é todo aquele sertão, onde “até asa branca bate suas asas em retirada”.

 

Os poucos segundos dessa situação, que pareceram uma eternidade, foram bastante para marcar indelevelmente sua alma a tal ponto de até hoje, quarenta anos passados, não poder evitar as lágrimas aos olhos e o nó na garganta, toda vez que ouve Asa Branca, ode à epopéia de um povo que, como disse Euclides da Cunha: “é antes de tudo, um forte”.